23 de novembro de 2008




K.

1. Depois de longo engasgo, vomitou-se. Já não suportava o sacolejar, soçobrava dos fétidos odores, a respiração já não alcançava. Nem lápis nem papel à mão, o suor escorrendo entre as pernas, o banco como que se derretia, era plástico e suor e cheiro de gente. Para não aspirar poeira, cerrou os olhos. Queria voltar, não lhe agradavam as fugacidades, mas quando dava por conta, e às vezes nem dava, estava com a velha mala aprumada de seus poucos pertences, a parada do ônibus já atafulhada às cinco da manhã. Nem leite ainda e já vida mesma, nem calor ainda, e ela já indo, nem pra onde, nem pra quando, nem por nada.

2. Perdera a noção das horas, desejava apenas dormir conforme o sono, comer conforme a fome, ignorando totalmente a massa de passageiros e seus hábitos e horários e conformidades. Era isso, K. não se conformava nem se confortava. E o olho abriu assim de susto, como cegueira de quando a gente vê tanto que de tão perto não fica cor nenhuma.

3. Alguns retornos mais e surgiu uma brisa boa, até conseguia, com certo esforço, encontrar a grama ou a terra seca. Já podia pensar, pensava. Que faltava algo ali de dentro, e por isto ela não alcançava o de fora, e tinha de ir sempre pro mais longe que podia, sem nunca poder saber se mesmo o passado de tão pertinho podia resplandecer de novo, nem mesmo o passado mais de perto, que de tão agora nem foi ainda.

4. Inextrincável defasagem: K. desejava ardorosamente escapar daquilo que a todo instante se lhe voltava como impossibilidade de esquecer. Quanto mais esquecia, mais dizia, em uma hemorragia verbal desconexa, todo o tempo desvelando algo além do que pressupunha no início, todo o tempo desvelando, aliás, o que de mais íntimo e secreto ela possuía. Com isto passou a nutrir nefasta fúria pelas palavras, simplesmente enganadoras. Havia uma sutil (porém notória) hiância entre sua intenção e seu desatino. E lágrimas vertiam dos olhos cansados da poeira ao perceber que estrada nenhuma calava este buraco, que de tão dentro nem dentro estava mais.

3 comentários:

alice disse...

uma mistura de Kafka Processo com Clarice musicada.

Super disse...

uma delícia de leitura e um arrepio no corpo

(aluém precisa ensinar este povo daqui alguma expressão mais poética do que "piel de gallina" para descrever o que se sente)

beesos

Unknown disse...
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