5 de maio de 2019

Ela é meu escape. Com ela, navego por mares outros.
Horizontes se sonham, se somam.
Feito a primavera que sucede a neblina.
Feito o entardecer estendido que sucede
os longos dias de frio.

24 de junho de 2015

Sobre nós 


(ou: A chegada de Francisco) 

(ou: A segunda travessia)



Eu achava que precisava ir muito longe. Ele me fez perceber que o essencial já estava aqui. Francisco e sua simplicidade, Francisco e sua serenidade. É como se ele me lembrasse, a todo instante: "Mamãe, já temos tudo". 

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Onde eu previa a revolução, encontrei a ressignificação. Francisco me faz revisitar a minha história, a história de Vicente, a história de nós quatro - com lentes mais tolerantes, com cores mais condescendentes. 


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Queria eu viver sua chegada com todas as intensidades possíveis. Ele respeitou: dois dias de pródromos e vinte quatro horas em trabalho de parto, no dia em que completamos 41 semanas de gestação. Todas as dores, angústias, lindezas e surpresas. Que precisaram ser vividas - não havia outro jeito - a meu modo. "Podes ser quem tu és". 


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Quanta reinvenção! Quanto amor! Menino de olhar penetrante, firme, determinado. Outra vez, o exercício da maternidade é essencialmente descoberta e potência,  desencontro e ruptura: é abertura da alma, é despir-me de mim, é sacolejar minhas certezas, é acolhida do outro em sua singularidade. 


É entrega, ainda e sempre.


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Filho, obrigada por me escolher como mãe. 





4 de janeiro de 2015

De caminhos e tempos

Gestar pela primeira vez é intensidade: o coração estupefato das descobertas. Novidades e sensações novas se sucedem a cada dia, emoções que transbordam pelo corpo e pela alma. O primeiro filho, ao nascer, carrega importantíssima e singular missão: fazer nascer seus pais. Travessia que começa no resultado positivo do exame e, já me parece, não termina nunca. Ser mãe e pai é reinventar-se constantemente. 


Porque Vicente cresce! Cresce a olhos vistos, e tão rápido, e tão forte, que por vezes não me escapa o espanto. O tempo voando... De bebezinho que (só) adormecia longas horas no calor do meu colo a guri que desbrava o mundo, pinta e borda, que já reconhece letras e números, que - no auge da descoberta da linguagem e do poder da prosa - nos surpreende a cada dia com uma pérola nova. Com seu amor ímpar pela vida que me oxigena todos os dias. 


Gestar pela segunda vez é serenidade. É travessia advertida: como atravessar um rio que sabemos das turbulências, mas já também mais cientes da nossa força. Ter um filho nos faz descobrir que podemos muito, muito mais do que pensamos. E, assim, Francisco vai chegando em nossas vidas de forma tão natural e tranquila quanto avassaladora. E eu, que desta vez desejei e desejo que o tempo de gestar passe devagarzinho, querendo curtir cada fase com todos os seus sabores, me vejo num piscar de olhos praticamente na metade do caminho. Já! Olha aí o tempo voando outra vez...


Vicente, a seu tempo, vai descobrindo Francisco; e nós também vamos nos descobrindo como nova família, agora um quarteto, já antevendo as infinitas aventuras que a vida nos reserva. Acolho com reverência, respeito e amor infinitos os já constantes movimentos dele em mim: quão maravilhosa é essa sensação de companhia e afagos constantes. 


Francisco, e nosso trajeto suave, me permite relançar alguns caminhos e apostas. Que não seria possível sem a travessia que vivi junto de Vicente, e que só ele poderia me ensinar: da desconstrução das certezas, da entrega sem reservas, do pular de olhos fechados ao abismo do indizível do amor. Este amor que só mesmo um filho pode nos fazer descobrir. 
E começo o ano embebida desta calorosa gratidão: por eles, nossos meninos, sentido e razão maiores que eu e Mateus poderíamos descobrir nesta existência. 


7 de agosto de 2014


O mito da maternidade perfeita

Tenho para mim que vivemos uma era de transição, no que tange ao campo da maternidade e paternidade. Uma conjuntura peculiar que faz com que as famílias tenham mais tempo ou disposição (se é que podemos falar em 'ter tempo' quando se tem um filho!) para se interrogar, questionar, pesquisar sobre inúmeros aspectos desta linda missão que assumimos quando decidimos receber um bebê no mundo.


Disto derivam diversos grupos de pais, fóruns de discussão na internet, blogs, comunidades virtuais. Todos os temas, da gestação à criação de uma criança, são intensamente debatidos, ponderados, problematizados. O que não faltam são relatos e fotos romantizadas, pintando um cenário cor-de-rosa para uma experiência que, os pais bem o sabem, abriga todas as cores do universo.


Por um lado, a facilidade da informação propicia a circulação de ideias e a conscientização destes processos - que deixam de ser automatizados, passando mais bem à condição de escolhas que fazemos em torno à criação de nossos filhos. Por outro, em certa medida, pode fazer com que os pais sejam conduzidos a escolhas antecipadas, desenhando de antemão um script idealizado para os acontecimentos - em geral, tão díspares - que irão se suceder neste encontro sempre singular. Quase como se, em tempos de consumo desenfreado, também estivessem à disposição "pacotes prontos" da maternidade, ideias preconcebidas e dicotomizadas (isso é bom! isso não presta!), deixando os pais em apuros caso, por algum motivo, uma curva aparecer nesta linha reta. Cria-se um mito de perfeição em torno ao exercício da maternidade, que me soa estranho e perigoso.


Perguntas que me faço: por que cercearmos a criação de nosso filhos com tantas certezas, esquecendo a potência do insabido, do incerto? Qual o limite na linha tênue entre ofertar aquilo que nos parece melhor, que comunga de nossos valores e modos de viver (transmissão necessária e estruturante) e/ou aliená-los em nossas escolhas, eventualmente sobrepujando suas possibilidades de expressão desejante e singular?


Talvez seja este mesmo o difícil exercício: é, sim, preciso emprestar, transmitir, ensinar; mas é também preciso suportar que um filho faça com estes elementos o que lhe convier, e aí abrem-se infinitas possibilidades, de um sujeito que se constrói. É preciso abrigar sem prender, transmitir sem impor, afagar sem sufocar. Equilíbrio nem sempre fácil de sustentar.


19 de julho de 2014


A distância diz do tempo de sentir o que as palavras nem sempre alcançam. É vida demais, vida linda e transbordante: desde que Vicente nasceu, há um ano e nove meses (!), escrevo em pensamento. Nos raros momentos em que a cabeça pousa no travesseiro, por vezes as palavras se tramam, ávidas por partilhar as doçuras e aventuras deste nosso encontro. Adormecem antes que possam ser colocadas no papel. Adormecem comigo, carrego-as dentro de mim. Não por acaso, neste tempo, saiu-me a primeira tatuagem. Dizendo pouco e dizendo tanto. Na pele, no corpo, sem delongas. É preciso aprender a contrair a escrita - e síntese nunca foi uma de minhas virtudes.
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Todos os dias, antes do banho, tocamos algumas músicas. Mateus e Vicente na gaita de boca, Vicente alterna a gaita com o apito. Ao primeiro acorde, o guri abre um sorriso de orelha a orelha: AMA tomar banho (na mesma banheira branca, desde o dia em que nasceu). Eu canto, desafinada. O pequeno corre e pula e dança pelo corredor em uma alegria sem fim: já sabe o roteiro, já espera pela próxima canção. 
Ao final do ritual despir-musicar, os amigos o aguardam na banheira: "tatá" (tartaruga), "pessi" (peixe), "apu" (sapo), pato. Algumas vezes, bolhas de sabão sobrevoam os ares úmidos e azulados. Lavar o cabelo é seu momento contragosto: ainda assim, bravo que só ele, aguenta firme a função. Do banho à "preguicinha": uma passada pelo quarto, Vicente agarra "cheirinho" e Bubba (o elefante mais camarada do mundo) e se deita num colchonete na sala, aguardando o sono, enroladinho. Todos os dias assim. Tão simples, tão nós, tão cheio de amor. 
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A história do antes já é a nossa história. O amanhecer adensa o desejo do encontro. 

22 de setembro de 2013


Hoje faz um ano que, junto da primavera, ele chegou. Matutino como a mãe, num sábado ensolarado, com leve brisa que acariciava o rosto através da janela entreaberta. Nossa primeira música, uma valsa de Chopin.

Bem ali, aninhado ao colo, Vicente descobria o mundo com os olhos semicerrados, tateava com a boca minha pele, entre sussurros, carinhos e estranhezas. Que sensação tão linda quanto louca: num repente, era como se o mundo tivesse ganhado as mais novas e improváveis cores, os cheiros eram outros, o tempo era outro. Parecíamos flutuar.

Éramos outros, enfim. Vicente já não era o bebê da barriga, era agora um bebê no mundo. Dos chutes e movimentações vigorosas sob a pele, agora sacolejava seus bracinhos à procura de outras texturas e do calor dos nossos braços. Eu e Mateus, alçados irrevogavelmente à condição de pais daquele ser pequenino sedento de vida, responsáveis integralmente por sua existência.

Quantas passagens a elaborar, no tempo escasso do puerpério. Ali onde, por tanto tempo, não soube onde terminava eu e começava Vicente. Onde as mamadas, trocas de fralda e acalentos sucediam-se ininterruptamente, e já não vivíamos o relógio do mundo. Pouco importava se dia ou noite, se hora de almoço ou jantar. O começo do dia é arbitrário quando não se dormiu nada à noite e não há perspectiva de descanso no horizonte. Como na bela canção “Bebezinho”, do Palavra Cantada: “Não tenho tempo pra esperar a hora / Tem que ser aqui / Tem que ser agora”.

Vicente, esse menino determinado. Que faz a hora, sabe o que quer e o que não quer. Desde o princípio, tão afetivo e sensível quanto vigoroso em sua ânsia de vida. Desde os primeiros dias, desconstruiu todas as minhas certezas, me botou a repensar o mundo. E lá fomos nós, rever o status quo da maternidade e inventar. Improvisar. E tem outro jeito de aprender a ser pai e mãe que não improvisando?

Não havia teoria. Mateus e eu aprendemos a ser pai e mãe sendo, simplesmente. Submersos na experiência mais radical de nossas vidas, não parecia haver outro caminho senão ceder lugar à intuição e não antecipar questões e processos. Um dia por vez. Um dia que é tanto... Com suas descobertas doces. Com o olhar que descobre os raios de sol. Com a boca que esboça um primeiro sorriso. Com o corpo ávido por movimentar-se. Com os balbucios, com as músicas, com as cólicas, com os infinitos embalos de ninar.

E hoje penso que vivemos esse primeiro ano da única forma que nos foi (e nos é) possível viver: acolhendo as sinuosidades do caminho, abraçando o disruptivo, nos entregando ao insabido e ao indizível. Porque não há palavras suficientes para descrever o amor que um filho nos faz descobrir. Tampouco há preparo suficiente para esta experiência que nos transforma radicalmente, que vira a vida do avesso, em todos os sentidos que podem caber nessa frase.

Com Vicente, não cesso de me outrar. Ele me ensina sobre a vida, todos os dias. Tenho aprendido a sair do casulo. A jogar bola na grama. A erguer as persianas, a apreciar mais o sol que a meia-luz. A andar descalça, a brincar no chão. Sua energia me é, hoje, vital: descobri que preciso desse empuxe, dessa convocação à vida em movimento. Tenho aprendido que preciso dormir menos do que julgava, e que posso comer melhor do que comia. Que os cabelos podem sair de casa molhados.

Suas explorações contumazes e destemidas pela casa, pelos territórios da creche, pelas curvas do parque, não cansam de me lembrar que também posso me aventurar e que a vida nunca está pronta. Tenho me encorajado a ousar repensar rumos (profissionais, teóricos, existenciais) antes supostamente tão certos, equalizados com o script que eu desenhara cuidadosamente para minha existência - com belas letras de caligrafia e canetas coloridas e cheirosas.

Tenho aprendido que a vida se faz andando e, aos poucos, consigo dilatar meu limiar de suportabilidade às incertezas, ao que escapa ao controle e à possibilidade de organização. Se ainda insisto no lugar certo para as coisas, já percebo a batalha perdida: Vicente questiona a ordem, bagunça - literal e metaforicamente - meus alinhamentos e entendimentos. A caneca vira tambor. O balde vira esconderijo. A chave vira chocalho. O livro se lê do avesso. Descobri que o chão é menos sujo do que supunha - e que, aliás, a sujeira fortalece. Que para aprender algo novo, é preciso um passo de cada vez.

E então percebo que o Vicente dos primeiros dias é o Vicente de agora: desassossegado e obstinado, carinhoso e afetivo, sensível e esperto. Que demonstra claramente suas preferências, sem reservas para demandar nem cerimônias para prescindir. Que quando sorriu, gargalhou. Que quando andou, correu. Sem medo de cair. Ou, quiçá, desde tão pequenino sabiamente ciente de que os tropeços são notas fundamentais à melodia da existência. Que cair é premissa de quem se arrisca a tentar. E então, Vicente novamente me ensina. Sobre a persistência e sobre o desejo.

Hoje faz um ano que Vicente nasceu, que eu nasci como mãe e que Mateus nasceu como pai. E, a cada dia que passa, um sentimento de gratidão toma ainda mais corpo: porque sei que só com ele, só com Vicente, eu poderia aprender a ser mãe. Que, quando ele souber ler e puder acessar este escrito, saiba e lembre o quanto sou grata e imensamente feliz pela sua existência, o quanto me sinto orgulhosa e privilegiada por ter podido abrigá-lo dentro de mim e por poder acompanhá-lo e sustentá-lo nas incipiências e intensidades do viver. 

Que essa mãe por vezes se equivoca, mas que também entende que a vida é curvilínea e imperfeita. Nem por isso menos bela, ao contrário: tu me ensinas, incessantemente, a potência da dissonância. E que nosso amor me renova e me aviva, todos os dias, quando posso acordar com teu cheirinho e teu sorriso - sorriso de boca e de olhar -, quando posso rir das tuas sapequices, quando posso acalentar e embalar teu sono, quando posso conversar palavras e melodias inventadas, nessa língua só nossa.

Feliz primeiro aniversário, Vicente!


Porto Alegre, 22 de setembro de 2013.