26 de agosto de 2012


Aquarela 

. No sonho da noite passada, vertigens de cores e movimentos: o salto dizia da partida e da imensidão em frente. Duas curvas em encontro a desenhar o infinito da vida que chega. Havia que procurar um pouso suave na areia e reencontrar o equilíbrio sob os pés.

. A uniformidade quadricular das caixas não comporta a vida em sua dissonância. Sobram os agudos, as tortuosidades, os excessos. 

. Ao remexer no ontem, o espanto do que já não se precisa. Desfaço-me, com estranha intempestividade, de lembranças que hoje escolho não carregar. Meu corpo pode então flutuar no sonho: mais leveza. Acolho finalmente - e por ora - o entendimento de que há marcas que insistimos em reproduzir, embora fatigantes e dolorosas. A estas, não mais que um breve aceno de despedida. 

. Nunca lidei com facilidade com momentos de transição, embora possa vislumbrar e abraçar sua potência. Entre duas casas, o pequeno caos e a imprecisão relançam a pergunta sobre o lugar das coisas. Será preciso - e possível! - construir novos destinos aos objetos, revirar  o tom de algumas certezas, desassossegar os pontos de mirada.

. Deparo-me com a lentidão dos movimentos. A linha de chegada - ou de passagem - logo em frente: tanto eu como Vicente sabemos que ela está próxima e, cada qual a seu modo, tentamos encontrar pontos de conforto neste mês que algumas mães costumam apelidar de uma eternidade: o nono. Um tempo de paradoxos: o receio de atravessar a linha e a expectativa de, finalmente, conhecer este pequenino que tanto se remexe em minha barriga, de poder apalpar enfim as mãozinhas e pezinhos que ficam a saltar de um lado a outro da pele em brincadeiras vespertinas, de olhar nos seus olhos e acarinhar seu rosto. Tão perto e tão intenso que chega a assustar. Sua manobra inesperada - como um bom gremista, no finalzinho do segundo tempo -  permitiu-nos aguardar que ele escolha o momento de vir ao mundo. E setembro será um lindo e inquietante mês de espera. 

15 de junho de 2012



Espantos e amanheceres


As manhãs são apaziguantes de mim. Um café novo a dissipar o sono e a umidade, a luminária em um lento e sôfrego esmorecimento. Algumas linhas, algumas pausas. A cama posta, as ideias em efervescência. Apanho meu bloco, deposito rasuras e itinerâncias, ainda entorpecidas da noite. Quase um entre-ser. 


Vicente me acompanha, matutino como a mãe: cedo se apruma, trocamos afagos de toque e música. Despertamos para o dia ao passo mesmo em que, não sem espanto, apercebemo-nos outra vez desta mútua existência. Esquecimento e lembrança, escrita e vertigem: o riso é lacrimal, no pranto também há lirismo. 

12 de junho de 2012

Uma manhã de terça-feira


É estranho. Pensar que tão próximo estamos da dita estabilidade quando, mais do que nunca, sentimo-nos tão... instáveis. Fico a me perguntar em que momento a vida ficou tão séria. Quando foi que as planilhas do Excel - com seus intermináveis planejamentos, contas, prospecções - tomaram mais espaço na área de trabalho que a poesia, que a leveza da uma nota qualquer sorrateiramente escrita ao embalo de um cálice de vinho e um Chopin ao fundo. 


É estranho, e assustador ao mesmo tempo, perceber as circunscrições e contornos, quando por tanto tempo prezamos pelos silêncios que caminham ali mesmo, no desborde. Difícil alojamento na linha tênue que divide a métrica e a inexatidão. Que divide o esperado e a dimensão de surpresa que cada dia carrega. Que divide a rotina e a pungência, os ideais e a névoa. 


(O corpo, a forma, o disforme).


Acolho, por ora, a beleza do olhar ofuscado, temeroso, que não sabe ao certo por onde trilha, mas que não se exime a seguir o passo. Caminho, um pouco, no escuro. A tatear os anseios e receios, vontades e desatinos, como quem se deixa arranhar pelas asperezas, que não se furta ao desassossego. A traçar novos horizontes de leveza. 











8 de junho de 2012

Descompasso


Abriu a gaveta como quem procura desabitar-se. Apalpou antigas cartas e cheirou as flores ressequidas, já sem cor. Restara o perfume do tempo, este sim implacável. Já não sabia ao certo onde estava: se nos anseios juvenis, se na dissonância do agora. Um paradoxo: o passar do tempo não traz certezas, mais bem inquietantes hiatos de si. À margem do script, o desejo. 

2 de junho de 2012



Sopros

Porque é leve, embora rascante
meu olhar desvia
do assombro.

Enquanto o corpo acolhe
o sopro, finjo ser possível
o esquecimento.

Tangencio tuas notas ainda
mudas, feito nostalgia
do irrealizado.

E o desejo como tempo do
fora, como um suave e insone
descabido.






29 de maio de 2012





Avesso
Quase-amores repousam 
na esquina; valsam o deleite
dos encontros impossíveis.


Fresta
Por entre as duas linhas, o olhar
claudicante. Espio com timidez
a vida que pulsa.


Sacudidelas
Palpitações acenam para o novo, transbordantes
de mim. O empuxo ao passo é visceral
feito canção em silêncio. 



5 de maio de 2012

Entre encontros e estranhamentos


Dançam dentro de mim pequenas fagulhas. Entre afagos ritmados, tessituras de nós. Teu gosto se antecipa pelo toque: pela manhã, nossa conversa mais íntima. No quarto ainda dormente, levemente inebriado pelos feixes de luz da persiana, nos encontramos. 


...


Da alvidez inquebrantável, pouco restou. Do estranho encontro com sua lembrança, fez-se impostergável aceitar a queda. A caixa de sapatos, feito caixão, levou embora o surdo troféu do que já não sou.