22 de setembro de 2013


Hoje faz um ano que, junto da primavera, ele chegou. Matutino como a mãe, num sábado ensolarado, com leve brisa que acariciava o rosto através da janela entreaberta. Nossa primeira música, uma valsa de Chopin.

Bem ali, aninhado ao colo, Vicente descobria o mundo com os olhos semicerrados, tateava com a boca minha pele, entre sussurros, carinhos e estranhezas. Que sensação tão linda quanto louca: num repente, era como se o mundo tivesse ganhado as mais novas e improváveis cores, os cheiros eram outros, o tempo era outro. Parecíamos flutuar.

Éramos outros, enfim. Vicente já não era o bebê da barriga, era agora um bebê no mundo. Dos chutes e movimentações vigorosas sob a pele, agora sacolejava seus bracinhos à procura de outras texturas e do calor dos nossos braços. Eu e Mateus, alçados irrevogavelmente à condição de pais daquele ser pequenino sedento de vida, responsáveis integralmente por sua existência.

Quantas passagens a elaborar, no tempo escasso do puerpério. Ali onde, por tanto tempo, não soube onde terminava eu e começava Vicente. Onde as mamadas, trocas de fralda e acalentos sucediam-se ininterruptamente, e já não vivíamos o relógio do mundo. Pouco importava se dia ou noite, se hora de almoço ou jantar. O começo do dia é arbitrário quando não se dormiu nada à noite e não há perspectiva de descanso no horizonte. Como na bela canção “Bebezinho”, do Palavra Cantada: “Não tenho tempo pra esperar a hora / Tem que ser aqui / Tem que ser agora”.

Vicente, esse menino determinado. Que faz a hora, sabe o que quer e o que não quer. Desde o princípio, tão afetivo e sensível quanto vigoroso em sua ânsia de vida. Desde os primeiros dias, desconstruiu todas as minhas certezas, me botou a repensar o mundo. E lá fomos nós, rever o status quo da maternidade e inventar. Improvisar. E tem outro jeito de aprender a ser pai e mãe que não improvisando?

Não havia teoria. Mateus e eu aprendemos a ser pai e mãe sendo, simplesmente. Submersos na experiência mais radical de nossas vidas, não parecia haver outro caminho senão ceder lugar à intuição e não antecipar questões e processos. Um dia por vez. Um dia que é tanto... Com suas descobertas doces. Com o olhar que descobre os raios de sol. Com a boca que esboça um primeiro sorriso. Com o corpo ávido por movimentar-se. Com os balbucios, com as músicas, com as cólicas, com os infinitos embalos de ninar.

E hoje penso que vivemos esse primeiro ano da única forma que nos foi (e nos é) possível viver: acolhendo as sinuosidades do caminho, abraçando o disruptivo, nos entregando ao insabido e ao indizível. Porque não há palavras suficientes para descrever o amor que um filho nos faz descobrir. Tampouco há preparo suficiente para esta experiência que nos transforma radicalmente, que vira a vida do avesso, em todos os sentidos que podem caber nessa frase.

Com Vicente, não cesso de me outrar. Ele me ensina sobre a vida, todos os dias. Tenho aprendido a sair do casulo. A jogar bola na grama. A erguer as persianas, a apreciar mais o sol que a meia-luz. A andar descalça, a brincar no chão. Sua energia me é, hoje, vital: descobri que preciso desse empuxe, dessa convocação à vida em movimento. Tenho aprendido que preciso dormir menos do que julgava, e que posso comer melhor do que comia. Que os cabelos podem sair de casa molhados.

Suas explorações contumazes e destemidas pela casa, pelos territórios da creche, pelas curvas do parque, não cansam de me lembrar que também posso me aventurar e que a vida nunca está pronta. Tenho me encorajado a ousar repensar rumos (profissionais, teóricos, existenciais) antes supostamente tão certos, equalizados com o script que eu desenhara cuidadosamente para minha existência - com belas letras de caligrafia e canetas coloridas e cheirosas.

Tenho aprendido que a vida se faz andando e, aos poucos, consigo dilatar meu limiar de suportabilidade às incertezas, ao que escapa ao controle e à possibilidade de organização. Se ainda insisto no lugar certo para as coisas, já percebo a batalha perdida: Vicente questiona a ordem, bagunça - literal e metaforicamente - meus alinhamentos e entendimentos. A caneca vira tambor. O balde vira esconderijo. A chave vira chocalho. O livro se lê do avesso. Descobri que o chão é menos sujo do que supunha - e que, aliás, a sujeira fortalece. Que para aprender algo novo, é preciso um passo de cada vez.

E então percebo que o Vicente dos primeiros dias é o Vicente de agora: desassossegado e obstinado, carinhoso e afetivo, sensível e esperto. Que demonstra claramente suas preferências, sem reservas para demandar nem cerimônias para prescindir. Que quando sorriu, gargalhou. Que quando andou, correu. Sem medo de cair. Ou, quiçá, desde tão pequenino sabiamente ciente de que os tropeços são notas fundamentais à melodia da existência. Que cair é premissa de quem se arrisca a tentar. E então, Vicente novamente me ensina. Sobre a persistência e sobre o desejo.

Hoje faz um ano que Vicente nasceu, que eu nasci como mãe e que Mateus nasceu como pai. E, a cada dia que passa, um sentimento de gratidão toma ainda mais corpo: porque sei que só com ele, só com Vicente, eu poderia aprender a ser mãe. Que, quando ele souber ler e puder acessar este escrito, saiba e lembre o quanto sou grata e imensamente feliz pela sua existência, o quanto me sinto orgulhosa e privilegiada por ter podido abrigá-lo dentro de mim e por poder acompanhá-lo e sustentá-lo nas incipiências e intensidades do viver. 

Que essa mãe por vezes se equivoca, mas que também entende que a vida é curvilínea e imperfeita. Nem por isso menos bela, ao contrário: tu me ensinas, incessantemente, a potência da dissonância. E que nosso amor me renova e me aviva, todos os dias, quando posso acordar com teu cheirinho e teu sorriso - sorriso de boca e de olhar -, quando posso rir das tuas sapequices, quando posso acalentar e embalar teu sono, quando posso conversar palavras e melodias inventadas, nessa língua só nossa.

Feliz primeiro aniversário, Vicente!


Porto Alegre, 22 de setembro de 2013.