Hoje faz um ano que, junto da
primavera, ele chegou. Matutino como a mãe, num sábado ensolarado, com leve
brisa que acariciava o rosto através da janela entreaberta. Nossa primeira
música, uma valsa de Chopin.
Bem ali, aninhado ao colo, Vicente
descobria o mundo com os olhos semicerrados, tateava com a boca minha pele,
entre sussurros, carinhos e estranhezas. Que sensação tão linda quanto louca:
num repente, era como se o mundo tivesse ganhado as mais novas e improváveis
cores, os cheiros eram outros, o tempo era outro. Parecíamos flutuar.
Éramos outros, enfim. Vicente já não
era o bebê da barriga, era agora um bebê no mundo. Dos chutes e movimentações
vigorosas sob a pele, agora sacolejava seus bracinhos à procura de outras
texturas e do calor dos nossos braços. Eu e Mateus, alçados irrevogavelmente à
condição de pais daquele ser pequenino sedento de vida, responsáveis
integralmente por sua existência.
Quantas passagens a elaborar, no
tempo escasso do puerpério. Ali onde, por tanto tempo, não soube onde terminava
eu e começava Vicente. Onde as mamadas, trocas de fralda e acalentos
sucediam-se ininterruptamente, e já não vivíamos o relógio do mundo. Pouco
importava se dia ou noite, se hora de almoço ou jantar. O começo do dia é
arbitrário quando não se dormiu nada à noite e não há perspectiva de descanso
no horizonte. Como na bela canção “Bebezinho”, do Palavra Cantada: “Não tenho
tempo pra esperar a hora / Tem que ser aqui / Tem que ser agora”.
Vicente, esse menino determinado. Que faz a hora, sabe o que quer e o que não quer. Desde o princípio, tão afetivo e sensível quanto vigoroso em sua ânsia de vida. Desde os primeiros dias, desconstruiu todas as minhas certezas, me botou a repensar o mundo. E lá fomos nós, rever o status quo da maternidade e inventar. Improvisar. E tem outro jeito de aprender a ser pai e mãe que não improvisando?
Não havia teoria. Mateus e eu
aprendemos a ser pai e mãe sendo, simplesmente. Submersos na experiência
mais radical de nossas vidas, não parecia haver outro caminho senão ceder lugar
à intuição e não antecipar questões e processos. Um dia por vez. Um dia que é
tanto... Com suas descobertas doces. Com o olhar que descobre os raios de
sol. Com a boca que esboça um primeiro sorriso. Com o corpo ávido por
movimentar-se. Com os balbucios, com as músicas, com as cólicas, com os
infinitos embalos de ninar.
E hoje penso que vivemos esse primeiro ano da única
forma que nos foi (e nos é) possível viver: acolhendo as sinuosidades do
caminho, abraçando o disruptivo, nos entregando ao insabido e ao indizível.
Porque não há palavras suficientes para descrever o amor que um filho nos faz
descobrir. Tampouco há preparo suficiente para esta experiência que nos transforma
radicalmente, que vira a vida do avesso, em todos os sentidos que podem caber
nessa frase.
Com Vicente, não cesso de me outrar.
Ele me ensina sobre a vida, todos os dias. Tenho aprendido a sair do
casulo. A jogar bola na grama. A erguer as persianas, a apreciar mais o sol que
a meia-luz. A andar descalça, a brincar no chão. Sua energia me é, hoje, vital:
descobri que preciso desse empuxe, dessa convocação à vida em movimento. Tenho
aprendido que preciso dormir menos do que julgava, e que posso comer melhor do
que comia. Que os cabelos podem sair de casa molhados.
Suas explorações contumazes e
destemidas pela casa, pelos territórios da creche, pelas curvas do parque, não
cansam de me lembrar que também posso me aventurar e que a vida nunca está
pronta. Tenho me encorajado a ousar repensar rumos (profissionais, teóricos,
existenciais) antes supostamente tão certos, equalizados com o script que
eu desenhara cuidadosamente para minha existência - com belas letras de
caligrafia e canetas coloridas e cheirosas.
Tenho aprendido que a vida se faz
andando e, aos poucos, consigo dilatar meu limiar de suportabilidade às
incertezas, ao que escapa ao controle e à possibilidade de organização. Se
ainda insisto no lugar certo para as coisas, já percebo a batalha perdida:
Vicente questiona a ordem, bagunça - literal e metaforicamente - meus
alinhamentos e entendimentos. A caneca vira tambor. O balde vira esconderijo. A
chave vira chocalho. O livro se lê do avesso. Descobri que o chão é menos sujo do
que supunha - e que, aliás, a sujeira fortalece. Que para aprender algo novo, é
preciso um passo de cada vez.
E então percebo que o Vicente dos
primeiros dias é o Vicente de agora: desassossegado e obstinado, carinhoso e
afetivo, sensível e esperto. Que demonstra claramente suas preferências, sem
reservas para demandar nem cerimônias para prescindir. Que quando sorriu,
gargalhou. Que quando andou, correu. Sem medo de cair. Ou, quiçá, desde tão
pequenino sabiamente ciente de que os tropeços são notas fundamentais à melodia
da existência. Que cair é premissa de quem se arrisca a tentar. E então,
Vicente novamente me ensina. Sobre a persistência e sobre o desejo.
Hoje faz um ano que Vicente nasceu, que
eu nasci como mãe e que Mateus nasceu como pai. E, a cada dia que passa, um
sentimento de gratidão toma ainda mais corpo: porque sei que só com ele, só com
Vicente, eu poderia aprender a ser mãe. Que, quando ele souber ler e puder
acessar este escrito, saiba e lembre o quanto sou grata e imensamente feliz
pela sua existência, o quanto me sinto orgulhosa e privilegiada por ter podido
abrigá-lo dentro de mim e por poder acompanhá-lo e sustentá-lo nas incipiências
e intensidades do viver.
Que essa mãe por vezes se equivoca, mas
que também entende que a vida é curvilínea e imperfeita. Nem por isso menos
bela, ao contrário: tu me ensinas, incessantemente, a potência da dissonância.
E que nosso amor me renova e me aviva, todos os dias, quando posso acordar com
teu cheirinho e teu sorriso - sorriso de boca e de olhar -, quando posso rir
das tuas sapequices, quando posso acalentar e embalar teu sono, quando posso
conversar palavras e melodias inventadas, nessa língua só nossa.
Feliz primeiro aniversário, Vicente!
Porto Alegre, 22 de setembro de 2013.